7 - Governança territorial e fundiária
Por que o tema é considerado de alto risco
Há mais de dez anos, o TCU fiscaliza o tema da Governança territorial e fundiária. Em 2015, auditoria operacional nas ações de governança de solos não urbanos constatou diversas sobreposições de áreas federais em âmbito nacional, indicando que o governo federal não conhecia, com precisão, a situação de seu próprio território naquela época.
Tais constatações foram corroboradas pelo estudo publicado em 2019 na revista científica Land Use Policy por um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Segundo os autores, em 2018 o estado brasileiro não sabia quem era o proprietário de grande parte do território nacional. A área conhecida como “terra de ninguém” ocupava 141 milhões dos 850 milhões de hectares do país. A estimativa era que as terras privadas ocupassem 44,2%; as terras públicas, 36,1%; as redes de transporte, áreas urbanas e corpos d’água, 3,1% do território nacional; e as áreas não registradas, 16,6% do país.
O desconhecimento da malha fundiária nacional favorece a grilagem de terras (apropriação ilícita de terras por meio de documentos falsos), impede a boa gestão das terras públicas e a execução de políticas públicas, e impacta o gasto público e o exercício de direitos de inúmeras pessoas. O Brasil não dispõe de uma base fundiária unificada, que apresente informações dos registros e dos responsáveis por cada parcela de terra de todo o território nacional.
A conservação, a restauração e o uso dos recursos terrestres, de forma sustentável, são imperativos globais dada a confluência de crises recentes decorrentes de pandemias e mudanças climáticas. De acordo com alerta da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), a extensão global da degradação, em 2022, foi estimada entre 20% e 40% da área total de terra. Isso afeta, diretamente, quase metade da população mundial.
A situação no Brasil não é diferente. Considerando somente as áreas destinadas a pastagens, estudo realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 2024, indicou que 28 milhões de hectares estão com níveis de degradação intermediário ou severo. Esse risco impacta o setor agropecuário, que é relevante para a economia brasileira.
Em 2023, a participação do setor agropecuário no produto interno bruto (PIB) brasileiro foi de 23,8%, totalizando R$ 2,58 trilhões, segundo estudo divulgado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP).
Embora o TCU tenha expedido diversas determinações e recomendações ao governo federal nos últimos anos, ainda há muito o que fazer para o aprimoramento e a evolução do conhecimento dos solos brasileiros. Persistem problemas como a carência de informações sobre o território brasileiro, a falta de articulação entre instituições governamentais, a ineficiência na organização fundiária e a falta de integração entre os diversos sistemas de dados da governança do solo e da água. Desse modo, o tema requer acompanhamento contínuo pelo TCU.
O que o TCU encontrou
A partir de fiscalizações realizadas, o TCU identificou riscos significativos à Governança territorial e fundiária no país.
Em 2022, considerando o contexto de muitos problemas nos sistemas de informação do Incra, com importantes acórdãos direcionados à autarquia, o TCU auditou a estrutura e as práticas de governança e gestão na área de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) do Incra e, embora tenha encontrado um cenário diferente, com uma transformação digital em andamento na instituição, o Tribunal apontou as seguintes fragilidades:
- comunicação interna com falhas na divulgação dos novos serviços digitais;
- governança de dados inexistente;
- plano de gestão de continuidade de serviços ainda não formalizado; e
- área de TIC com risco de continuidade dos projetos por falta de pessoal.
A ausência de orientação e de estratégias do Incra para disseminar o uso dos serviços digitais pelos beneficiários do PNRA dificulta a adesão do público-alvo aos serviços on-line da Plataforma de Governança Territorial (PGT), ferramenta de serviços digitais do Incra. Essa situação prejudica a eficiência no processo de seleção de beneficiários e de regularização e titulação, bem como a efetividade da Política de Governança Digital do Poder Executivo.
Em 2023, o TCU constatou a inexistência de política de controle de acessos devidamente formalizada e estabelecida no Incra, demonstrando a baixa maturidade em relação à segurança da informação. Essa deficiência podia levar à exposição de dados sensíveis de beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e à possível violação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
O TCU ainda verificou a morosidade no desenvolvimento do serviço digital “Ingresso de Famílias do PNRA”, mesmo após a implementação, em 2021, da PGT. Com isso, a seleção de beneficiários continua a ser feita de forma manual, com consequente risco à correta destinação de lotes da reforma agrária.
Figura 7.1 - Plataforma de Governança Territorial (PGT)
Apesar de existir indicação para que seja criado normativo que estabeleça as diretrizes e os critérios para o uso adequado do solo e da água, o TCU detectou, em 2024, que ainda não foram iniciados os Fóruns Governamentais de Regulação da Ocupação e da Sustentabilidade do Solo e da Água. Esses fóruns são espaços compostos por representantes do governo e da sociedade civil para discussão e decisão sobre ocupação do solo e sustentabilidade dos recursos hídricos.
As principais deficiências relacionadas à governança de solos e da malha fundiária nacional, consistem em:
- grande quantidade de normas e falta de sistematização da legislação sobre ocupação e uso sustentável do solo e da água;
- pluralidade de instituições governamentais que atuam de forma não integrada e sem clara delimitação de funções;
- baixa confiabilidade das diversas informações exigidas dos donos de propriedades rurais, o que limita o seu uso nas políticas públicas;
- ausência de planejamento estratégico das políticas, integrado e de longo prazo, evidenciando baixa articulação entre as várias instituições envolvidas;
- pouco conhecimento sobre ocupação do território e capacidade de uso dos solos; e
- inadequação do monitoramento e da avaliação das ações de supervisão e gerenciamento dessa política pública.
No Plano Plurianual 2024-2027, foram inseridos três programas que indicam ações visando à sustentabilidade do uso do solo e da água. Entretanto, eles não possuem objetivos específicos sobre a governança de solos. São eles:
- 2321 – “Recursos Hídricos: Água em Quantidade e Qualidade para sempre”;
- 1190 – “Qualidade Ambiental nas Cidades e no Campo”;
- 1144 – “Agropecuária Sustentável”.
Quanto ao aspecto fundiário, persiste a falta de articulação do governo federal para que as diversas instituições envolvidas constituam rotinas de conferência e acerto de informações provenientes da coleta, da geração e do armazenamento de dados georreferenciados sobre a situação fundiária do país, principalmente de terras públicas. Essa medida impacta a precisão e qualidade dos dados territoriais disponíveis.
A falta de conhecimento preciso sobre a ocupação fundiária, a não integração das bases de dados georreferenciadas e a ausência de políticas eficazes favorecem práticas ilegais e comprometem a governança territorial no Brasil.
O que precisa ser feito
O TCU determinou ao Incra a apuração de todos os indícios de irregularidades na seleção de beneficiários do PNRA; a adoção de medidas para respeitar os princípios da publicidade, isonomia e objetividade na seleção de beneficiários; a supervisão sobre a ocupação dos lotes da reforma agrária; e o desenvolvimento de indicadores gerenciais e de desempenho para avaliação periódica dos resultados do programa.
O TCU também determinou ao Incra que formalize e coloque em prática política de controle de acessos aos sistemas de informação para disciplinar os mecanismos de concessão de autorização e de verificação periódica de usuários, entre outras boas práticas estabelecidas nas normas que tratam do tema.
Além disso, o TCU recomendou ao Incra que implemente a contínua comunicação interna sobre os novos serviços digitais disponíveis; priorize o desenvolvimento e a implementação de serviços digitais necessários à completa substituição dos sistemas Sipra e Sala da Cidadania, considerados ultrapassados, que oferecem serviços a beneficiários da reforma agrária; contemple as funcionalidades automatizadas na Plataforma de Governança Territorial (PGT) em suas rotinas de trabalho; regulamente a obrigatoriedade de uso da PGT; e elabore plano para divulgação e orientação do uso dos serviços digitais ao público externo.
Adicionalmente, o TCU determinou ao Incra e à Receita Federal do Brasil que realizem o levantamento e a integração dos sistemas cadastrais rurais utilizados na administração pública federal e estadual.
Decisões recentes
Acórdãos 199/2022, 2.713/2022, 169/2023, 729/2023, 816/2024 e 1.481/2024, todos do Plenário do TCU.
Benefícios gerados pela atuação do TCU
A atuação do TCU tem contribuído para melhorar a governança territorial e fundiária. O Decreto 9.414/2018, que instituiu o Programa Nacional de Levantamento e Interpretação de Solos do Brasil (PronaSolos), e a implantação da plataforma PronaSolos, sistema informatizado que organizou e consolidou as informações existentes sobre o solo no país, são alguns exemplos.
Destaca-se, também, a implementação do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter), ferramenta de gestão pública que integra o fluxo dinâmico de dados produzidos pelos serviços de registros públicos (cartórios) e o fluxo de dados fiscais, cadastrais e geoespaciais de imóveis urbanos (prefeituras) e rurais (Incra), produzidos pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios a um banco de dados espacial. O Sinter está em produção desde 2022 e, atualmente, integra dados de 20% dos municípios (1.161) com cadastro georreferenciado.
No âmbito do Incra, a principal ação estruturante para cumprir os acórdãos do TCU foi o desenvolvimento da Plataforma de Governança Territorial (PGT), responsável pela disponibilização de serviços on-line do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e da regularização fundiária. Ainda que não esteja completamente finalizada, a PGT deu agilidade aos processos, principalmente os de titulação.
No que se refere especificamente ao PNRA, o Incra analisou, até 2023, 173.866 indícios de irregularidades na relação de beneficiários, o que corresponde a aproximadamente 20% do total apontado pelo TCU. Além disso, o Incra implantou novos sistemas de supervisão ocupacional, como o Sistema Nacional de Supervisão Ocupacional (SNSO), posteriormente substituído pelo Titula Brasil, agora denominado PGT Campo, o que contribuiu para melhorar qualitativamente os laudos e os dados das vistorias nos projetos de assentamento.